Carta a um amigo – Paulo Mendes Campos

Na foto: Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Moraes, Manuel Bandeira, Mário Quintana e Paulo Mendes Campos na casa de Rubem Braga

Meu caro Otto: sei que você está de malas prontas, depois de dois anos e meio na Europa, para retornar ao Brasil, e assim eu não poderia deixar de adverti-lo nesta carta. As coisas aqui em nosso país mudaram muito e de repente; o fito desta é poupar-lhe um choque que até poderia desandar em uma espécie de neurose da situação.

Eu não sei bem o que houve mas o fato é que deu um negócio coletivo que torna as pessoas sempre insatisfeitas com aquilo que faziam habitualmente. Deu uma louca impressionante. Antes de mais nada, nem lhe passe pela cabeça perguntar a um marido pela mulher ou a uma mulher pelo marido. Houve uma troca geral. Sobre isso ficamos conversados, mas se prepare também para outras diversas surpresas, de que lhe dou apenas alguns exemplos. Os velhos tomam novocaína furiosamente, enquanto os moços tomam Coca-Cola e cocaína. Velhotas irremissíveis trafegam de lambreta pelas avenidas da zona sul, enquanto os mais lindos brotinhos andam de óculos e estudam na faculdade de filosofia. Ministros aprendem a tocar violão e escrevem em colunas sociais, diretores de graves órgãos de imprensa praticam ganzá ou reco-reco, ao passo que os colunistas sociais tratam de problemas de saúde pública. Não há vedete do Teatro Recreio que não dê, pelo menos uma vez por mês, uma entrevista sobre música clássica e literatura inglesa. A música popular está a cargo dos melhores poetas do Brasil. Os milionários não soltam mais um vintém, mas em compensação os prontos fazem grandes farras. Investigadores de polícia, ganhando dez mil mensais, gastam cento e cinquenta mil, mas não há de ser nada, pois, por outro lado, sujeitos que estão se enchendo de dinheiro não pagam mais nem fogo na roupa. Grã-finos, que eram capazes até de andar malvestidos só para saírem nos jornais, hoje pedem pelo amor de Deus que os deixem em paz. Há muitos intelectuais que tocam bateria e há bateristas que não dormem ser ler um pouco de Heidegger ou Burckhardt. O Exército, de que tanto se falava mal, hoje guarda a dignidade brasileira, não deixando que os entreguistas metam a mão no petróleo. Os violonistas agora cantam, os cantores fazem corretagens, o Escurinho faz o gol, o Quarentinha está jogando o fino, o Botafogo contratou para armar o time um crioulo que tocava gongo muito bem. Em matéria de moda, não há nada mais impossível. Regra geral, as mulheres estão cada vez mais masculinizadas, enquanto as camisarias para homens exibem nas vitrinas aquelas roupas coloridíssimas que a Esther Williams usava nos filmes antigos da Metro. Deputados famosos por sua violência panfletária hoje escrevem sobre rosas. Os aviões nem sempre voam, os lotações voam sempre, outro dia apareceu uma vaca na minha rua.

Antônio Maria hoje é um magro e Vinicius de Moraes, nosso bom Vinicius, um gordo. Esporte de moda é boxe, apreciado sobretudo pelas damas. Os mais espalhafatosos doutrinadores das práticas democráticas são conhecidos nazistas do Estado Novo. Os humoristas ficaram sérios de súbito, enquanto homens probos dormiram gravemente e acordaram palhaços. Gente rica não tem mais filhos, por causa da inflação, mas as favelas estão cheias de crianças. A polícia instalou por conta própria a pena de morte, fuzilando sem mais aquela ladrões e malandros.

Está mesmo tudo virado de pernas pro ar e é de todo conveniente que você vá se acostumando. Os velhos acabaram com essa coisa de morrer, mas o enfarte come solto entre a gente moça. Há juízes que vivem no Jóquei e há cavalos que vivem no Palácio da Justiça. Quando alguém quer mostrar que uma coisa é boa ou bonita, diz que essa coisa é bárbara. Galenteio hoje se chama curra. O vinho nacional é bom, você poderia tomar algumas marcas sem perigo de dor de cabeça. Em matéria de televisão não lhe digo nada, você verá com os próprios olhos: piorou ainda mais. Há cães que têm medo de gatos e gatos com medo de ratos e ratos (isso há demais e pertencem ao nosso set social) sem medo de ninguém.

O parto agora (dizem elas) é uma delícia. Macaco velho já mete a mão em cumbuca. Mania também nova é estudar dicção: há pessoas que dizem as maiores besteiras do mundo com uma dicção linda. Mulher matando marido diminuiu bastante, ainda bem. Candidatos à presidência da República há dois: um de São Paulo, que nasceu em Mato Grosso, e um aqui do Rio, que nasceu em Minas Gerais. Outro dia, um médico, amigo meu, foi nomeado na prefeitura para uma vaga de “bailarino letra i”. Em Niterói me disseram que há ópio. O cardeal não quer que o Brasil reate relações comerciais com países socialistas. Vício novo é homem público aparecer na televisão para ser xingado de todas as maneiras. Gostam. Você conhece o pintor Raimundo Nogueira, não é? Pois outro dia ele foi visto recusando um bife com fritas, alegando que tinha acabado de almoçar; confesso que foi só um instantinho, imediatamente pensou melhor e comeu o bife.

Fico por aqui, de braços abertos, à sua espera. Agora, tem uma coisa: se você por acaso chegar num dia de sábado, vai me desculpar, meu velho, mas não posso ir ao cais, porque estarei jogando futebol. Ponta de lança.

Manchete, 15/08/1959

(Paulo Mendes Campos. Companhia das Letras, 2013)